27 de nov. de 2007

TÉLIA NEGRÃO ACABA DE CHEGAR DA NICARÁGUA E TRAZ UM TEXTO PARA DEBATE E ANÁLISE


Dois países, dois cenários, injustiças de gênero: morrer de aborto como condenação
Telia Negrão é jornalista e mestre em Ciência Política, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde e membro do conselho diretor da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe. Colaboradora do Portal Mhário Lincoln do Brasil.

Visitou a Nicarágua para reunião da Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos. E-mail: teliabr@gmail.comNicarágua, o pequeno país da América Central conhecido pela Revolução nos anos 1979 e a década seguinte, vive o primeiro ano do retorno do antigo chefe da revolta do passado e um novo momento político no mínimo questionável.
Tendo chegado de volta ao poder por sua conversão ao catolicismo e sua aliança com a Igreja e setores dos mais conservadores, Ortega anunciou transformações sociais no país, no entanto assistiu quieto e colaborou para que fosse decretada a proibição de todos os tipos de aborto naquele país. Ou seja, interromper a gravidez até quando a mãe corre risco de morte agora é crime, situação que só acontece no Chile e em El Salvador em termos de América Latina, e contraria toda a tendência mundial de despenalização do aborto.
Por essa mesma razão amarga-se também no Brasil a derrota da proposta de descriminalização do aborto durante a 13ª. Conferência Nacional de Saúde do Brasil, ocorrida neste mês, quando a Igreja Católica mobilizou toda a sua militância, usando inclusive métodos reprováveis, decidida a dar uma resposta ao governo e às mulheres, que na II Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres (agosto, 2007), aprovara a descriminalização da prática no Brasil. Uma decisão orientada pelas Nações Unidas para o cumprimento de três tratados internacionais.Dois países, dois cenários.
A Nicarágua com certeza ganha em miséria, exclusão social e índices de desenvolvimento entre os piores do mundo. Oito entre 10 nicaragüenses vivem com 2 dólares ou menos por dia. Um país em que o acesso aos bens e serviços é privilégio, em que a saúde pública não oferta nem o que se considera o básico. A proximidade com o México faz desse país o lixo final de máquinas, equipamentos e ônibus urbanos norte-americanos de terceira mão; impõe racionamento de energia com apagões a cada hora; acampamentos urbanos de trabalhadores à espera de indenizações por envenenamentos por produtos condenados porém utilizados na agricultura. A indústria de miséria expõe milhares de crianças nas ruas, los ninos de la calle, que atacam turistas em busca de dinheiro, se atiram sobre carros para impedir sua passagem, e retratam o grau de indignidade e humilhação de um povo que um dia fez uma revolução. Hoje, apesar das comemorações da posse de Ortega em janeiro e da bajulação de seus colegas latino-americanos sem exceção, o povo começa a lhe virar as costas.
É inacreditável, mas nesse país cujo dinheiro (córdobas) custa 18 vezes menos que um dólar, a passagem de transporte coletivo custa 0,30 de córdoba, mas uma tentativa de aumentá-la em 15 centavos provocou uma revolta popular há poucos dias. O motivo é simples: o povo não tem os trinta centavos da moeda que custa tão pouco. Não há trabalho, o sistema público de saúde é uma ficção, a educação é privilegio dos abastados que já criam os filhos em língua inglesa para enviá-los rapidamente a los Estados, como se referem aos Estados Unidos. Nicarágua é um país visivelmente destruído: alvo de acidentes naturais, teve seu patrimônio histórico destroçado, sobram algumas igrejas, um palácio e algumas manifestações populares. Entre elas, a mais conhecida, El Güegüence, uma encenação de resistência aos espanhóis, na qual se utilizam máscaras. Quando se pergunta sobre o uso das máscaras, está na ponta da língua de todos: quando se trata de resistir, hay que disfrazar.Este país é dirigido por um homem condenado por um processo movido junto à Corte Internacional de Justiça por haver violado e mantido sua filha enteada e adotiva em cárcere privado por quase vinte anos. Denunciado por ela e pelo movimento de mulheres, Ortega desenvolveu um ódio contra as feministas. A maior organização da Nicarágua, Sí Mujer, dirigido pela ex-companheira de sandinismo, a médica Ana Maria Pizarro, é considerada a inimiga número 1 do presidente. Vive sob ameaças. Sua organização, que já atendeu 45 mil mulheres vítimas de violência sexual em 16 anos, vive sob um cerco. Ali se realizaram durante anos e anos os procedimentos permitidos pela lei do aborto terapêutico vigente desde 1870, com alta qualidade técnica e respeito às mulheres e adolescente. Agora atendendo com restrições, com portas seguras, Si Mujer é vigiado por todos os lados, mesmo sendo considerada entre as mais importantes instituições de apoio às mulheres do mundo. Mas o que importa isso, ali é a Nicarágua. Ortega vive num palácio cercado de muros, vizinho de Sí Mujer, ali é sua residência, seu gabinete e a sede de seu partido, Tudo junto, como ele se acostumou a fazer, em promiscuidade.

O que há em comum com o Brasil?
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2001 e 2004 embora o Brasil tenha reduzido índices de desigualdade, ainda é uma das piores do mundo, mesmo se for levado em conta países com índices de desenvolvimento semelhantes, como os da América Latina. De acordo a entidade, o Brasil conseguiu ultrapassar apenas 5% dos países no ranking da desigualdade, ou seja, na 10a pior colocação neste ranking. Nos encontramos, assim, em uma situação ruim em relação a países da América Latina com nível de desenvolvimento similar ao nosso. Utilizado o coeficiente de Gini, um dos índices de desigualdade mais utilizados no mundo, declinou 4,6%, ao passar de 0,594, em 2001, para 0,566 em 2005. Quanto mais próximo de zero, menor é a desigualdade, portanto ainda falta muito.Neste nosso país, quanto à saúde dispomos de um sistema público universal que é o maior do mundo, porém o acesso varia quanto à região, e a qualidade do atendimento ainda está longe de ser considerada boa. As mulheres adoecem em morrem por falta de atenção, por causas evitáveis, de falta de acesso a tratamento de doenças de alta incidência, como os cânceres de mama e de colo de útero, diagnosticados tardiamente; a morbi mortalidade materna, indicador do grau de desenvolvimento de um país, mostra que o Brasil mantém as mulheres em situação de descaso.
Cerca de 1,5 milhão de abortos clandestinos por ano indicam que as políticas de planejamento reprodutivo são absurdamente falhas, ao lado da omissão educativa em relação à sexualidade segura desde a adolescência. Este Brasil mantém o aborto como crime, à exceção de dois casos, o chamado terapêutico, fruto da violação sexual e quando a gestante corre risco de vida. Aqui não houve nenhuma revolução, além dos golpes do passado.
Em comum com a Nicarágua: as desigualdades sociais e de gênero e o peso da igreja católica nas decisões públicas e o descumprimento de tratados internacionais. Embora o executivo (leia-se Ministro da Saúde e mais alguns) se tenha empenhado em difundir a idéia de que as mortes maternas e as seqüelas decorrentes do aborto inseguro e clandestino sejam problemas graves de saúde pública, o Congresso Nacional se submete às pressões das forças mais retrógradas da igreja católica e suas irmãs fundamentalistas, jogando a vida das mulheres na lata do lixo.
Na verdade o congresso brasileiro não se vê como parte do Estado, e o Judiciário, ao negar direito básico de abortamento em caso de fetos malformados, se perde em inúteis discussões sobre o início da vida. Ambos não se consideram comprometidos com os tratados internacionais sobre saúde sexual e reprodutiva que reconhecem a criminalização do aborto como violação aos direitos humanos das mulheres e causa de mortes maternas, e apontam para a despenalização. Seus salários são pagos pelo povo, mas mulheres não valem à pena.

Link da matéria original:

http://www.mhariolincoln.jor.br/